Cunha

a redescoberta de velhos caminhos

Marcos Santilli

História Única

Cunha e Parati tiveram os mesmos períodos de efervescência e estagnação ao longo de quinhentos anos, conforme eram ou não utilizadas como caminho, uma espécie de afunilamento geográfico onde transitou a riqueza nos ciclos econômicos do ouro, café e agora, a do turismo.

Isolada, a população cunhense manteve sua cultura popular vigorosa, autêntica, não produzida ou deformada pelo turismo insipiente. Metade de seus 25.000 habitantes vive na zona rural, aninhadas nas montanhas do vasto município, quase do tamanho de São Paulo.

As duas cidades originaram-se da singularidade de sua geografia, que também oferece a paisagem grandiosa e extravagante paralela à história espetacular, pouco conhecida, assim como suas belezas naturais surpreendentes e inexploradas.

A presença européia assinala-se inicialmente na Aparição, bairro rural de Cunha, a partir de 1596. Chamou-se Boca do Sertão o local de acampamentos no alto da Serra do Mar, onde os colonizadores acabavam de galgar a temerosa serra, o pior trecho de grandes jornadas de Parati ao vasto interior brasileiro.

Facão foi outro nome dado ao ajuntamento crescente de tropeiros e colonos que davam suporte ao intenso fluxo migratório desencadeado pela descoberta do ouro no sertão dos Cataguás, Minas, na virada do século 16 para o 17.

Em 1709 aporta no Brasil uma frota de 97 navios com migrantes portugueses e 8 naus de guerra para proteção contra a pirataria. Chegavam encantados, na febre das lendárias minas de Sabarabuçu, uma espécie de Eldorado, que denominou a cidade de Sabará. Foi a primeira corrida do ouro da era moderna, a maior que tivemos. Transformou radicalmente a vida brasileira, acrescentando fausto e movimentação sem precedentes, também na metrópole.

Cunha foi a porta de acesso do Atlântico às lavras de ouro de aluvião sucessivamente descobertas, povoando e colonizando Minas Gerais.

Caminho Velho do Ouro, próximo ao antigo Registro da Cachoeira, Alfândega Real Portuguesa

Detalhe de um muro de arrimo construído por escravos no autêntico Caminho Velho do Ouro

Pioneiros e piratas do século 16

Após o descobrimento do Brasil, os portugueses ficaram “arranhando a costa como caranguejo” no dizer do frei Vicente do Salvador, barrados pela extensa muralha dos contrafortes da Serra do Mar, rolando pau-brasil para suas naus, desenrolando o assédio das potências marítimas hegemônicas e de piratas. Em 1530 Portugal estava enrolado numa crise financeira com a perda do monopólio de comércio das especiarias orientais.

Pressionado pela coroa para encontrar riquezas, Martim Afonso de Souza em 1532 funda São Vicente, o primeiro núcleo populacional europeu no Brasil. Em 1560, por ordem de Mem de Sá, enviou Brás Cubas para “descobrir” o interior. Galgou o Planalto Paulista pela trilha dos Guaranis chegando a Minas Gerais através do Rio Paraíba, graças ao apoio ingênuo e solidário dos povos indígenas. Iniciou-se a colonização do interior.

Anthony Knivet escreveu o primeiro texto sobre a subida de Parati a Cunha. Foi tripulante da armada do corsário inglês Thomas Cavendish que tomou e saqueou o porto de Santos e a Vila de São Vicente na noite de natal de 1591. O pirata, membro da corte inglesa, volta no ano seguinte para repetir a façanha. Desta vez, repelido pelos portugueses e com pesadas baixas, abandonou vinte e oito homens feridos na Ilha de São Sebastião. Os poucos sobreviventes foram aprisionados, entre eles Knivet. Alfabetizado, quando ninguém sabia ler, tornou-se serviçal e escrivão do governador Martim Correia de Sá.

Knivet participou de sete entradas aos sertões, preando índios e buscando metais preciosos. Esta expedição buscaria o apoio ou combate aos tamoios, até então aliados aos franceses. Teria aportado em Parati e subido a trilha dos goianazes com 700 portugueses e 2.000 índios. Verdade ou não, é surpreendente imaginar tal número de homens enfileirados, chafurdando na lama, escorregando em material orgânico em decomposição, serpenteando pedras lisas e grotões profundos da trilha íngreme, fria e úmida dos goianazes, rumo à “aldeia de cima”.

Início da descida pelo Caminho Velho do Ouro

Cunha

Rua Casemiro da Rocha, a principal

Centro de Cunha

Construída no alto de uma montanha a 900m de altitude, circundada por outras mais altas, a cidade desce ladeiras cruzando ruas estreitas, adaptadas à topografia montanhosa. Além das igrejas, pouquíssimas edificações restam da época em que o ouro passava para Parati. O trânsito do café legou poucos casarões e alguns conjuntos com fachadas de taipa de pilão que dão sua face urbana mais típica. São construções simples, despojadas, que alinharam as ruas e calçadas estreitas dos tempos tropeiros. Algumas casas são originais e muitas foram maquiadas por revestimentos tiveram janelas e portas substituídas.

O pequenino e charmoso mercado municipal tem características rurais, a velha fonte metálica de água mantida ao fundo. Próximo ao mercado, ainda está em pé o casarão que hospedou o Duque de Caxias na Guerra dos Emboabas.

Entrada da missa da Festa do Divino na matriz

A matriz Nossa Senhora da Imaculada Conceição, construída em 1731, um exemplo do barroco paulista, tornou-se ícone da cidade. Os sinos badalam anunciando festas, mortes, missas e perda de documentos. Em 1793 ergueu-se a Igreja do Rosário e São Benedito para a população escrava.

Vista parcial da praça da matriz

A praça da matriz, calma em sua rotina, ocupada pelo povo que faz dela um centro de contatos sociais, atividades religiosas, pequenos negócios, rede de informações e solidariedade. A população rural, dá seu charme, tradição e hospitalidade. A praça fica agitada nas festas e festivais de música, com um grande palco cercado de barracas de artesanato e alimentos, com shows musicais nas temporadas. A doceria da Cidinha é uma tentação permanente na praça, com seus deliciosos doces, salgadinhos caseiros e compotas.

Em 1932, o calmo centrinho transformou-se em praça de guerra, instalando o comando paulista, que lá resistiu por três meses até o avanço e vitória das forças federais, numérica e profissionalmente superiores.

Rua Casemiro da Rocha, a principal

À tarde, na Praça da matriz

Abertura do forno Raku

Cerâmica

As antigas paneleiras de Cunha produziram belíssima cerâmica utilitária rústica, de origem indígena, que praticamente desapareceu com o tempo. A tradição foi retomada há trinta anos, com a chegada de jovens ceramistas japoneses e um casal português que mudaram para Cunha, formando seguidores e atraindo outros ceramistas migrantes. As novas técnicas trazidas e desenvolvidas por este grupo ativo e crescente são hoje uma referência da cerâmica contemporânea brasileira, de extrema sofisticação e requinte.

Cerca de vinte ateliês de cerâmica artística firmaram-se como grande atrativo local. É uma experiência sensível e prazeirosa conhecer os ateliês. Os visitantes são recebidos pelos autores que muitas vezes fazem queimas e abrem fornos com palestras e venda de peças. São eventos charmosos, semelhantes às vernissages, mas que os artistas partilham com o público as surpresas da imprevisibilidade de sua produção. Eventualmente, cursos rápidos permitem aos visitantes manusear, moldar, tornear e queimar o barro, levando para casa uma obra inesquecível e ainda conhecer o encanto dos esmaltes, corantes, soluções de acabamento e textura.

Cunha é a cidade em que se realiza o maior volume de queima em noborigama. No Japão a tradição destes fornos tem-se inviabilizado pelo custo da lenha. Utilizam também fornos raku, elétricos e a gás. A diversidade temática, de estilos e técnicas, criam um circuito único pelo universo da cerâmica de alta temperatura.

Saiba mais - www.cunhaceramica.info / www.mecc.art.br / www.noborigama.com / www.icccunha.org

Poente visto do bairro Vila Rica

Atrações

Bons restaurantes, populares e sofisticados, tem feito de Cunha um local cada vez mais procurado pelo turismo gourmet. Produtos orgânicos locais de qualidade favorecem esta vocação cunhense: pinhão, castanhas, shitake, shimeji, mel, queijos, inclusive de cabra e búfala, além de legumes, verduras frescas e saborosas.

A tradição da cachaça cunhense se revigora com novas marcas. Visitas guiadas a um alambique permitem ver como se faz e saborear a deliciosa variedade de cachaças de qualidade, algumas com sabores frutados . Degustações de vinhos também acontecem com frequência crescente e há uma boa adega distribuidora, com vinhos de qualidade, também servidos em pousadas e restaurantes.

Sugere-se, também para crianças, visitas ao capril, à fazenda de criação de búfalos, banhos em cachoeiras, passeios a cavalo, mula, charrete, pesqueiros de trutas. Trilhas e caminhadas de todos os tipos, extensões e graus de dificuldade podem ser desfrutados. Há quem ouse o vôo de asa delta e afirma ser o vôo mais sensacional já experimentado. Dê uma olhada no googleearth!

Congada

Festas Populares

Após o reveillon, já no dia 6 de janeiro culminam as Folias de Reis que circulam meses pelos sítios e arraiais, trazendo festas ao som de violas caipiras, caixas, pandeiros e sanfonas acompanhando o vozerio agudo e dissonante dos cantos.

Corpus Christi celebra-se em junho com grande procissão, fiéis caminham em diversas ruas sobre tapetes estampados em flores, serragem colorida, pó de café, cobrindo com desenhos as ruas do itinerário. Varandas e janelas são decoradas com panos e flores.

A bandeira do Divino circula meses pelos bairros rurais e culmina na festa em julho, na matriz. A Festa do Divino é uma tradição sebastianista portuguesa de todo o interior brasileiro, infelizmente em desaparecimento. Nos bairros estão vivos e autênticos os festejos com congadas, jongos, cavalhadas, moçambique, novenas, procissões e reisadas. Em julho ocorre também o Festival de Inverno, com apresentação de música variada na praça da matriz. De maneira semelhante, em janeiro acontece o Festival de Verão e em julho o de inverno.

Em abril, cavaleiros e cavaleiras de todos os bairros rurais desfilam pelo centro da cidade, com seus melhores trajes e chapéus tradicionais, cavalos e selas adornados para a Cavalaria de São Benedito.

Em maio, quando caem os pinhões, celebra-se o Festival do Pinhão em que, além de shows musicais e outras atividades culturais, restaurantes e pousadas oferecem grande variedade de pratos de pinhão com suas receitas.

As festas juninas são tradicionais e autênticas. São celebradas na roça e é comum ver nas noites de Santo Antonio, São João e São Pedro, famílias à volta da fogueira comendo pinhões, batata-doce e bebendo quentão.

Cerimônia católica na Festa do Divino

Missa na Festa do Divino

Congada

Vista parcial da Cachoeira do Pimenta

Meio ambiente

A quantidade de cachoeiras existentes no município é impressionante. Além das cerca de setenta catalogadas, outras menores são sempre uma descoberta individual. As cachoeiras do Pimenta e do Desterro são as mais conhecidas e visitadas.

O Parque Estadual da Serra do Mar possui uma grande área de matas primárias preservadas com diversas trilhas, cachoeiras, e guias para visitação durante o dia. A sede está no fim da Estrada do Paraibuna, cerca de 25 km em estrada de terra, serpenteando pelo riozinho encachoeirado, cujas águas formam o lendário Paraíba. Cruza bairros rurais simpáticos, cheios de vida e cultura, onde vivem artistas e é imperdível o restaurante popular onde se experimenta a comida caipira autêntica servida no fogão de lenha, que dá seu nome.

Cunha tem uma vasta linha de divisa com o Parque Nacional da Bocaina, que se debruça sobre Parati. Estes parques garantem um permanente e amplo cinturão de florestas primárias que contornam o município em sua face ocidental.

A produção de carvão desmatou parte significativa do município a partir dos anos 40. A inserção de gado leiteiro e depois a braquiária, transformaram radicalmente a paisagem, o solo, os lençois freáticos e consequentemente o clima.

Recentemente o município tem-se reflorestado de maneira surpreendente e agora é uma APM - Área de Proteção de Mananciais. Cunha tem recuperado suas nascentes e leitos de rios com o trabalho da Serra Acima, organização não governamental dedicada ao meio ambiente e formação de guias turísticos. Oferece opção profissional aos jovens, principalmente da zona rural.

Igreja São José da Boa Vista, a primeira de Cunha

De Cunha ao alto da Serra

O trecho é cênico. Montanhosa, a rodovia corcoveia inicialmente pela crista das montanhas, descortinando belas visões à direita e à esquerda. São cadeias de elevações suaves a perder-se no horizonte, algumas vezes ainda delineado pelos distantes altos da Mantiqueira. Paisagens que os geógrafos chamam apropriadamente de “mar de morros”.

A poucos quilômetros de Cunha, vê-se a Igreja de São José da Boa Vista, a primeira de Cunha, construída em 1724 quando lá se planejava construir a cidade. Diz a lenda que o padre, com o extraordinário poder cartorial de então, carregava a santa para onde está a atual matriz e dizia que ela sumia da Boa Vista e aparecia naquele local, confirmando assim, inquestionavelmente, a preferência pessoal do sacerdote.

Local do antigo rancho tropeiro da Aparição, chamado Pareçam pelos goianazes pré-cabralinos

Nossas descobertas na Aparição

Há três anos atrás, quando mudamos para a Aparição, desconhecíamos tratar-se de um sítio histórico e arqueológico relevante. Ouvíamos genericamente que estávamos no percurso do Caminho do Ouro.

Ao cavarmos uma pequena valeta para instalar novo encanamento, ficamos perplexos com o achado de diversas ferraduras, pregos, moedas, cacos de cerâmica e um vizinho encontrou uma adaga de prata do século 19.

Através de livros e documentos antigos e com a ajuda de amigos historiadores confirmamos evidências e obtivemos respostas para muitas indagações que nos acompanhavam desde nossa chegada na Aparição. Este nome sempre nos inquietou. Explicações de velhos moradores eram dúbias e insatisfatórias.

A descoberta da origem indígena deu-nos a dimensão e a importância histórica deste local. Explico: Entre tantos documentos que mencionam a Aparição, o mais marcante é um estudo encomendado por Alexandre de Gusmão para dar suporte aos argumentos da diplomacia portuguesa na elaboração do Tratado de Madrid. O título é imenso (“Itinerário Geográfico com a verdadeira Descrição dos Caminhos, Estradas, Roças, Sítios, Povoações, Lugares, Vilas, Rios, Montes e Serras que há da Cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro até as Minas de Ouro”), foi composto por Francisco Tavares de Brito, de Sevilha:

Guaratinguetá - “…a esta Vila vem dar o caminho de Paraty, vem ao Bananal (Fazenda Muricana - primeiro pouso em Parati), sobe a inacessível serra e descança na Pareçam”. Eureka! Aparição vem de palavra indígena! Infelizmente os Guaianazes foram assimilados e o idioma extinto, sem deixar informação linguística quanto a seu significado. Alguns sertanistas, entre eles Brás Cubas, costumavam aportuguesar nomes indígenas para facilitar sua assimilação. Aprendemos, com farta documentação, que o Pouso da Aparição foi utilizado pelos Guaianazes em trânsito imemoriável do litoral à serra, ao Vale do Paraíba e ao planalto central brasileiro. Ficamos encantados com a secular tradição de descanso e pouso onde está assentada a Pousada dos Anjos, onde vivemos.

Casa histórica, da fazenda Aparição, antigo Pouso Pareçam, hoje Pousada dos Anjos

O Pouso e repouso da Aparição

Os portugueses aprenderam com os nativos não somente caminhos, mas logística para árduas viagens, a arte difícil de sobrevivência nas florestas, alimentos, remédios, ferramentas e tantas coisas inclusive tomar banho com mais frequência do que no reino.

Adotaram o Pouso Pareçam e o chamaram de Aparição. Segundo historiadores era uma parada obrigatória, primeiro dos goianases e a partir do século 16 utilizada intensamente desde Anthony Knivet, o pirata! A razão é que a distância da base da serra até a Aparição é exatamente o que é possível caminhar em um dia. A Aparição situa-se na fenda rochosa que afunila para Parati e abre rumo a São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Aqui pernoitaram apresadores de índios, bandeirantes, aventureiros, padres, bispos, coletores de impostos, soldados, funcionários da coroa portuguesa, contrabandistas, mercadores, ourives, governadores, damas, barões do café e milhares de escravos.

Moro na Aparição. Escrevo agora olhando pela janela. Vejo a tosca mas conservada casa-sede da fazenda Aparição, estimada em 200 anos de sua construção original em taipa-de-sopapo, circundada por amplo gramado, de onde se vê o lago povoado de patos e marrecos. Este é um dos chalés da Pousada dos Anjos. www.pousadadosanjos.com.br.

Fazenda Aparição durante a Revolução de 1932

Em função de sua localização estratégica, a casa histórica da Aparição foi tomada na Revolução Constitucinalista de 1932 e usada como comando e hospital militar das forças de Getúlio Vargas. Os moradores foram expulsos e seus bens confiscados. Moacir, herdeiro da família Jango, foi parido na Serra do Quebra-Cangalha, onde os pais se refugiaram.

A 2 km da Pousada dos Anjos está o túmulo e monumento a Paulo Virgínio, mártir paulista da Revolução, que foi torturado e executado pelas forças de Getúlio Vargas. Consta que teria se negado a revelar posições das forças constitucionalistas. Outros dizem que ele simplesmente não sabia.

Área ocupada pelo comando das forças federais, agora Pousada dos Anjos

Casa do Registro do Taboão, construído no séc. XVI e demolido nos anos 80

Alfândega Real Portuguesa

No início da corrida do Ouro, a coroa portuguesa instalou rapidamente o registro da Barreira do Taboão para controlar a circulação do ouro no início da trilha afunilada entre Cunha e Parati, acreditando ser esta a única passagem para o porto de Parati. Ergueu sólido casarão com paredes espessas de adobe, grandes portas de madeira de lei, dois andares com visão panorâmica do Caminho Velho.

Em poucos anos a serra foi permeada por descaminhos, ou seja, picadas de contrabandistas para embarque de ouro clandestino nas enseadas e baías da recortada linha costeira. O Registro foi transferido para a Cachoeira, em Parati. Em local elevado, com visão abrangente do porto, a cerca de 15 km, para evitar contrabando, pirataria e controlar a chegada de navios para o embarque oficial do ouro. Só então, numerados e chancelados, os lingotes eram embarcados.

Lá, na mata, restam as ruínas da Casa dos Quintos, um misto de alfândega, pedágio e posto militar onde ficavam dragões da coroa portuguesa, coletores e fiscais controlando a circulação de mercadorias, ouro e pedras preciosas.

Infelizmente, o casarão do registro do Taboão foi demolido. Em 1980 tive a oportunidade de fotografá-lo ainda em pé. Foram suas últimas fotos, com a imponência comprometida pelos rombos nas telhas de coxa e no adobe infiltrado das paredes. O telhado e madeiramento lavrado, como aconteceu a todas as construções tradicionais de Cunha, foi abastecer obras em Parati, quando lá o turismo já vibrava, sinalizando o novo ciclo econômico.

caminho Caminho Velho do Ouro

Caminho Velho do Ouro

Da Aparição a Parati dá para ir a pé como sempre o fizeram índios e aventureiros. Ou a cavalo, como se viaja desde o século 17. O percurso adequa-se a bike, moto, asa delta, ultra-leve, carrinho de rolimã, dependendo do estilo do viajante. Só não pode ser trilhado nas costas de índios e escravos como fazia explicitamente a elite do século 16. É uma caminhada maravilhosa para os razoavelmente preparados, cerca de seis horas a serem percorridas necessariamente com guia, se for pelo verdadeiro Caminho Velho do Ouro.

Nos séculos 16 e início do17 subia-se somente a pé. A partir de então, com a mão de obra escrava, sucederam-se reformas, pedras foram sendo assentadas e muares começaram a transitar cada vez mais intensamente pelo velho caminho, já então com engenharia militar portuguesa sofisticada e surpreendente para a época.

Esta obra pode ser contemplada pelos caminhantes que trilham longos trechos empedrados, quase intactos, ocultos na floresta, invisíveis a olhos rodoviários. Uma avenida íngreme de pedras arredondadas encaixadas, fora do tempo e do espaço. Ladeada por matas virgens, os muros de arrimo e canais de escoamento vão sendo lentamente digeridos pela recomposição da floresta. Uma visão monumental, impressionante, e ao contemplá-la é impossível não pensar no sangue, suor e lágrima escravos.

Pode-se ver aves e animais silvestres, até selvagens, cipozais, samambaias, bromélias, orquídeas, taquaras entre tantas espécies e emocionar-se com a extraordiária diversidade biológica da mata atlântica. O caminho é entremeado de fontes límpidas que se vão se acumulando em corredeiras e quedas até a cachoeira da Pedra Branca, local agradável para um banho ao final da descida. Certamente este é o melhor, único e mais desconhecido dos programas a se fazer em Cunha.

caminhovelho Caminho Velho do Ouro, entre Cunha e Parati

rodovia Trecho da estrada de terra Cunha-Parati

Rodovia Cunha-Parati

Com calma, qualquer carro vai. Sugiro uma 4X4 sem problemas mecânicos, com CDs de Vila Lobos, Egberto Gismonti, Milton Nascimento ou Toninho Horta. Não esqueça trajes de banho, chapéu, hidratante, água mineral para o sol quente do dia e bons agasalhos se pernoitar na serra.

Para uns é apenas uma estrada péssima. Mas trata-se dos caminhos mais fascinantes a entrelaçar história e geografia como uma gigantesca trança de grossos cipós crescidos e carcomidos por milênios galgando penhascos.

Recomendo dirigir bem devagarinho observando a exuberância da mata, as belas vistas, imperceptíveis aos apressados, cachoeiras e animais. Dos 44 km da estrada entre Cunha e Parati, nove são difíceis, de terra. Lembram uma escadaria de pedras. É aí que o carro não pode quebrar e celulares nem sempre pegam. Como antigamente, o meio de locomoção é que não pode falhar. O percurso dura pouco mais de uma hora. Cruzar a Serra do Quebra Cangalha é um trajeto único, espetacular, coberto pelas florestas primárias e penhascos inabitadas do Parque Nacional da Bocaina.

Lembre-se que os pioneiros portugueses levaram 96 anos para atingir este acesso, na época ameaçador aos viajantes pioneiros que num único dia não conseguissem galgar o paredão granítico. Muitos morriam de fome, frio, animais peçonhentos, assaltos e acidentes em precipícios espetaculares. Difícil caçar, impossível fazer fogo para suportar o frio e a umidade da serra, sempre carregando tudo nas costas.

rodovia chuva Trecho da estrada de terra Cunha-Parati na chuva

macela Vista da Pedra da Macela para o mar de morros do quebra-cangalha

O Paredão Cultural

Pela rodovia atual, a partir do ponto mais alto da serra, tudo muda. Cruzamos a divisa com o Estado do Rio de Janeiro e o cume da lâmina escarpada de rochas colossais, iniciando a descida. O clima esquenta e torna-se úmido bruscamente, surge a vegetação tropical, o asfalto interrompe-se por 9 km difíceis durante a travessia do Parque Nacional da Bocaina. Aparecem bananeiras e outras espécies comuns do litoral. O clima torna-se inadequado para uva, pêra, maçã, castanhas e pinhão, some o gado leiteiro, tradição nas montanhas, e daí para a frente vamos acessar as praias maravilhosas entre São Paulo e Rio.

As montanhas cunham também duas culturas típicas brasileiras: a litorânea caiçara e a caipira interiorana. O espigão da serra é o corte físico em que elas se tocam. As duas cidades foram irmãs siamesas durante séculos, ligadas pelo tronco do Caminho Velho e mesclam remotas tradições indígenas e portuguesas sincretizadas à negra como porta de entrada do tráfico escravagista ao Vale do Paraíba e às Minas Gerais. É surpreendente que os dois polos culturais quase opostos, tão próximos geograficamente tenham conservado sua diferenciação relativamente intacta.

vista paraty Detalhe da vista do Pico da Macela

A Formidável Construção da Paisagem

Bem antes de Adão aparecer por aqui, uns duzentos milhões de anos atrás, no cretáceo inferior, ocorreu a fragmentação megatectônica que nos separou da África. Uma descomunal invasão de águas marinhas formou o Atlântico entre os dois novos blocos continentais.

A paisagem passou por ações vulcânicas num passado remoto, e após a formação da plataforma continental, elevaram-se os planaltos interiores e os falhamentos que criaram a Serra do Mar, a Mantiqueira e também os Andes. As intensas variações climáticas e dos níveis oceânicos no Quaternário Superior (de menos 100 metros a mais 3,20m), com as ocorrências de sedimentação e submersão, desenharam, assinaram e fomos presenteados com a melhor das paisagens do mundo. Os geólogos garantem que essa história está impressa nas fenomenais rochas graníticas que delineiam a costa norte de São Paulo e sul do Rio de Janeiro.

O mapa geológico mostra a singularidade desta paisagem magnífica, a muralha íngreme e granítica de 800 a 1.800 metros de altitude que barrou por quase um século o acesso de colonizadores.

macela2 Detalhe da vista do Pico da Macela

A visão estupenda do Pico da Macela

O cenário desta história radical pode ser contemplado do Pico da Pedra da Macela que se debruça a 1800 metros de altitude sobre o oceano e “… caso o bom tempo ajudasse, os tropeiros tinham uma magnífica e privilegiada visão do litoral fluminense, com suas inúmeras ilhas, de um lado, e a baía de Ubatuba do outro. À frente somente o vasto Oceano Atlântico, e abaixo, Paraty”, segundo o notável geólogo Aziz Ab’Saber. Do lado oposto, o “… mar de morros, que tão bem representam o modelado tropical úmido do Brasil Atlântico…”, onde se abriga Cunha. Do alto da pedra vê-se ainda Angra dos Reis, a usina nuclear e o Saco do Mamanguá, um rasgo de mar, cercado de florestas, que adentra as escarpas montanhosas.

Se comparados aos maciços serranos, as ilhas paradisíacas, fauna, flora e tudo o que é visível na costa é muito recente. AbSaber afirma que “…certas ilhas continentais do Brasil do sudeste foram apenas maciços costeiros quando o nível do mar esteve mais baixo, tornando-se ilhas após a forte ascensão do nível oceânico vinculada à retomada da tropicalidade, acontecida nos últimos 10.000 – 12.000 anos”.

…“No entanto, por mais agredidas que tem sido as heranças da natureza, elas continuam se comportando, no conjunto, como um dos cenários mais diferenciados da face da terra”.

Cunha vista Cunha e a Igreja São José da Boa Vista. Ao fundo, a Mantiqueira

baciaparaty Parati vista da rodovia


Marcos Santilli © 2010
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